Por Itasat
Havia uma leve garoa quando, em 27 de março, o papa Francisco apareceu sozinho na gigante e esvaziada Praça São Pedro para dar sua bênção extraordinária "Urbi et Orbi" e conceder indulgência plenária - ou seja, o perdão dos pecados - para os católicos de todo o mundo e para toda a humanidade.
"Deus onipotente e misericordioso, olhe a nossa dolorosa situação: conforta teus filhos e abre nossos corações à esperança porque sentimos a sua presença de Pai em nosso meio", disse Jorge Bergoglio naquele ritual histórico, motivado exclusivamente pela maior pandemia em um século.
Após a celebração, o Pontífice parou para rezar em frente ao "crucifixo milagroso" que quase nunca deixa a igreja de São Marcelo no Corso, em Roma, e que é alvo de profunda veneração dos católicos desde 1519, quando saiu ileso de um incêndio. Três anos depois, foi usado em uma procissão de 16 dias pelas ruas da cidade para acabar com a Grande Peste - e, coincidência ou não, funcionou.
A pandemia do coronavírus Sars-CoV-2 não marcou apenas aquela bênção inédita, mas também permeou toda a postura do líder da Igreja Católica nos meses que se sucederam, com alertas constantes sobre a falta de atenção aos mais pobres e vulneráveis, sobre a falta de proteção ao meio ambiente e, principalmente, sobre a necessidade de seguir as orientações da ciência.
No entanto, a mudança mais palpável na vida da Igreja foi o uso da tecnologia. Desde março e até agora, missas e outras celebrações vêm sendo realizadas por streaming e sem presença de público, inclusive no Vaticano.
O papa, conhecido por valorizar a proximidade física e espiritual com os fiéis, passou metade do ano celebrando sua audiência semanal de dentro da Biblioteca Apostólica, longe das multidões que costumam lotar a Praça São Pedro para ouvir sua palavra.
Contudo, apesar do ineditismo da situação, o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Joel Portella, diz que a adaptação foi rápida e ágil.
"Foi uma adaptação rápida como decorrência da pandemia e da agilidade com que tivemos de responder àquele momento entre março e abril deste ano. Por parte das comunidades, foi um desafio bem recebido. Houve, sem dúvida, quem não entendesse o contexto como uma situação excepcional, em vista de um bem maior, que é a vida das pessoas. Mas esses foram poucos. Na verdade, o ingresso no mundo virtual já vinha sendo feito, só que a passos mais lentos", afirma o bispo em entrevista à ANSA.
Para Portella, "ainda é cedo" para saber se a tendência de transmissão online será mantida, embora ele acredite que "esses avanços no campo virtual vieram para ficar", sem, entretanto, "substituir o presencial".
"Não creio que haverá retrocesso nem substituição, isto é, nem extinção das ações virtuais, nem substituição do presencial pelo virtual. Deverá ocorrer um equilíbrio em que o virtual poderá ajudar muito. A Igreja, porém, em vista da preservação da vida, mantém o distanciamento e aguarda a indicação das autoridades sanitárias para retornar ao presencial, que, repito, é a regra", ressalta.
Doações
Além das mudanças nas missas, a liderança do papa Francisco em termos de preocupação com o mundo também ganhou força. O líder católico fez inúmeras doações de equipamentos e verbas para diversos países e, em muitos discursos, comparou trabalhadores da saúde e de serviços essenciais com santos.
"O papa Francisco nos ajuda com suas palavras muito claras e incisivas, bem como por meio de seu testemunho. O que ele nos indica fazer, ele age por primeiro. É claro que os papas anteriores também agiram assim. A diferença é que o papa Francisco é um papa do tempo da mídia, uma realidade que já se manifestava no tempo de João Paulo II e que se acelerou muito nos últimos anos. papa Francisco sabe que as atitudes sinceras, nascidas do coração, precisam chegar às pessoas, e atualmente o caminho é o dos recursos virtuais. Não se trata da notícia pela notícia, mas do testemunho transmitido através desses meios", acrescenta Portella.
Segundo o secretário-geral da CNBB, esse exemplo gerou "experiências muito ricas" para as comunidades mais afetadas pela pandemia no Brasil. "Foram muitas ações de pessoas, grupos e comunidades, desde a clássica distribuição de alimentos até escutas, partilhas de vida, entre outras. Nesse sentido, houve um grande atendimento aos mais vulneráveis, como é o caso de regiões onde a fome logo chegou ou então de idosos que residem sozinhos", diz.
O meio ambiente, um dos temas mais caros a Jorge Mario Bergoglio à frente da Igreja, também não ficou de fora, com os constantes lembretes de que a destruição da natureza pode gerar cada vez mais crises sanitárias como a pandemia de covid-19, além de marginalizar ainda mais os vulneráveis.
Por isso, Francisco lançou a encíclica "Fratelli Tutti" ("Todos Irmãos"), um documento de forte teor social no qual ele volta a criticar a chamada "cultura do descarte" e incita a humanidade a ter mais cuidado com o próximo.
Na encíclica, o papa diz que a pandemia do novo coronavírus despertou a "consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos".
"Alguns pretendiam fazer-nos crer que era suficiente a liberdade de mercado para garantir tudo. Mas o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, por força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que nos benefícios de alguns. A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência", escreve Francisco, em um alerta sobre os rumos da humanidade.